terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Crónica número 10


Há 12 anos atrás, estava eu, mais ou menos por esta hora, a reinstalar-me em casa, depois de três dias de ausência. Nos braços trazia a minha filha mais velha e, também, um mar de dúvidas e muita ansiedade. “Estarei eu à altura de criar esta menina? Saberei dar-lhe tudo aquilo que ela merece e precisa?” Na rua a festa estava instalada. Muita gente, muito barulho, muita animação. Como que a dar as boas vindas a esta vida, acabadinha de nascer. Os dias que se seguiram a este foram repletos de incertezas, tantas quantas visitas e palpites. O leite alimenta ou não? Será que tem xixi? E cocó? Estará com fome? É hora do banho? Deito-a de lado? Dou de mamar de três em três horas ou só quando ela chora? Adormeço-a ao colo ou deito-a logo na caminha e deixo-a berrar até se calar? Tantas dúvidas, tanta insegurança. Os dias deram lugar aos meses e os meses, aos anos. Hoje essa bebé não cabe toda no meu colo, toma decisões, assume responsabilidades, trabalha com afinco e enoja-se com a injustiça. Dá conselhos, volta-se para mim e diz: “gosto de ti”, pede abraços e ri-se com coisas que têm realmente piada. Já lhe disse isto mais do que uma vez e o meu coração repete-o a cada instante: não sei o que fiz para merecer uma filha como esta, mas estou radiante por tê-lo feito.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Crónica número 9

Fui ver “A Casa”, um espectáculo de Aldara Bizarro, e adorei. Este espectáculo baseia-se numa série de entrevistas realizadas entre 2009 e 2010, em várias localidades do país. Aos entrevistados, das mais diversas idades e condições sociais, eram feitas três perguntas: Qual o sítio ideal para viver? Como vive actualmente? De que histórias se lembra quando ouve a palavra casa?
Aldara Bizarro pegou em partes dessas entrevistas e produziu um espectáculo muitíssimo interessante, de onde sobressai a diversidade de opiniões, expectativas, gostos, sonhos, objectivos. Um dos entrevistados dizia que gostava de viver no centro de grandes cidades, no centro do barulho e da agitação, mas a sua casa era no sétimo andar, para não ouvir o barulho; outra dizia que gostava de viver num sítio onde não houvesse vizinhos à volta; outro gostava de ter vizinhos simpáticos e por aí adiante.
No espectáculo, a autora abordou também a temática do excesso de zelo em relação às crianças, quando disse que as crianças hoje, não têm espaços para brincar, é tudo muito pequenino e pontiagudo. E de capacete enfiado na cabeça produziu o momento mais hilariante da noite, onde as cabeçadas em tudo e todos eram uma constante, dando mesmo a ideia de estar num espaço muito pequeno ou, numa outra leitura, dando conta de que, mesmo com todos os cuidados e protecções, as crianças acabam sempre por ter que seguir o seu percurso, feito de quedas, cabeçadas, feridas e brincadeiras menos contidas.
O final foi simplesmente magnífico, com os bailarinos a sonharem com uma torre eifel edificada mesmo ali, no Parque de Nossa Senhora da Graça (Ovar). Para o efeito, arrasariam o Centro de Artes, onde estava a decorrer o espectáculo, e construíam a torre, com um aeroporto enorme ali perto, Ovar no centro do triângulo intercontinental – Tóquio/ Ovar/ Nova Iorque. Às vezes sinto-me assim, a sonhar alto, a querer ir mais longe, muito mais longe, muito mais além. Bom, muito bom.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Crónica número 8


Arrisco a dizer que não estava um dia tão solarengo como o de hoje mas, na realidade, não me lembro bem. Só me lembro do meu irmão me ter ido buscar à escola, numa acelera, e de ter dito que já tinha nascido o bebé da Lurdes. “E o que é?”, perguntei eu. “Acho que é um menino”, respondeu ele. A desilusão apodera-se de mim. Queria uma menina. Com 18 anos acho que faz sentido poder escolher. Chego a casa, a minha mãe está à porta. “Já nasceu!”. “Eu sei”, respondo. “É um menino, não é?”. “Não, é uma menina!” Fico radiante, entusiasmada, não vejo a hora de ir ver a bebé ao Hospital de S. Paio de Oleiros. Almoço e sigo para lá, vejo aquele bebé tão perfeitinho, adoro a sensação, fico animada quando vejo a mãe da bebé mais animada ainda e com cara de quem não tinha, nem por sombras, passado por um parto. Depois, bom, depois, seguiram-se as emoções todas, possíveis e imaginárias. As primeiras vezes de tudo, a descoberta, a surpresa, a preocupação. (Ó miúda, quando caíste do berço pregaste-nos cá um susto!) E eu ali, presente em todas elas, a viver cada momento, feliz da vida, encantada com aquele estado, madrinha pela primeira vez.
“Maínha, um tá?”, dizia ela - cabelinho ralo e loiro – quando entrava em casa dos meus pais, à minha procura. E eu escondia-me e deliciava-me a ouvir aquela vozinha que chamava por mim. Depois aparecia – com 18 anos e sem grandes responsabilidades, só sobrava tempo para o lado bom da vida – e ríamos as duas, apertadas para sempre em abraços e beijinhos. As festas do ballet, a natação, a escola, tantos passos e tantos centímetros a mais!
Foi há 23 anos, mas parece que foi ontem. Obrigada, minha querida, por me deixares fazer parte da tua vida.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Crónica número 7

A maior parte das pessoas que tem a minha idade e até um pouco mais velhas, não faz a mínima ideia do que é a crise. Não sabe o que é trabalhar no duro, não sabe o que é não ter mais do que comer do que uma sopa. Eu não sei o que é a crise. Há pessoas que me falam que passaram fome, sim, fome, aquilo que acontece quando o que comemos não chega para nos saciar ou, pior ainda, quando não há nada que comer. A mim também me parece uma obra de ficção haver uma sardinha para dividir por não-sei-quantos e não haver carne, nem peixe, nem leite, nem queijo, nem uma série de coisas às mesas das refeições diárias. As pessoas que me falam destas carências, falam-me também de trabalhos árduos que levavam a efeito. Um contraste, portanto. O que faltava em alimentação, sobejava em trabalho pesado. Numa ocasião entrevistei uma senhora, já de idade, corpo arqueado e fino, que me disse que, quando era nova, transportava, a pé, de Ovar até Gaia, dois caixões – um de adulto e outro de criança, dentro do primeiro. Não faço a mínima ideia quanto pesa um caixão de criança ou de adulto, mas deve pesar bastante. A senhora disse que fazia isto amiúde, caixões à cabeça, pés descalços, e aí ia ela. A brutalidade do episódio ecoa na minha cabeça, até hoje.
Tempos soturnos, aqueles. Os parcos cuidados ao nascer prolongavam-se pela vida fora. Vidas quase exclusivamente de trabalho, o compasso dos anos a ditar, implacável, as duras marcações: crescer, trabalhar, trabalhar, casar, ter filhos, filhos, filhos, criá-los e pô-los a trabalhar e morrer. Vidas onde faltava tudo, afectos incluídos, em certos casos. Dizer que estamos em crise quando, não podendo comprar artigos de marca, passamos a comprar marcas brancas, é excessivo. E, na verdade, não é isto que nos preocupa. O que nos preocupa é não sabermos se isto vai ficar pior, se vamos ter que dispensar certos alimentos e hábitos que tínhamos por adquiridos. É que apesar da mudança ser aquilo que de mais certo temos na vida, ainda é uma palavra que nos causa muita impressão.