quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Crónica número 7

A maior parte das pessoas que tem a minha idade e até um pouco mais velhas, não faz a mínima ideia do que é a crise. Não sabe o que é trabalhar no duro, não sabe o que é não ter mais do que comer do que uma sopa. Eu não sei o que é a crise. Há pessoas que me falam que passaram fome, sim, fome, aquilo que acontece quando o que comemos não chega para nos saciar ou, pior ainda, quando não há nada que comer. A mim também me parece uma obra de ficção haver uma sardinha para dividir por não-sei-quantos e não haver carne, nem peixe, nem leite, nem queijo, nem uma série de coisas às mesas das refeições diárias. As pessoas que me falam destas carências, falam-me também de trabalhos árduos que levavam a efeito. Um contraste, portanto. O que faltava em alimentação, sobejava em trabalho pesado. Numa ocasião entrevistei uma senhora, já de idade, corpo arqueado e fino, que me disse que, quando era nova, transportava, a pé, de Ovar até Gaia, dois caixões – um de adulto e outro de criança, dentro do primeiro. Não faço a mínima ideia quanto pesa um caixão de criança ou de adulto, mas deve pesar bastante. A senhora disse que fazia isto amiúde, caixões à cabeça, pés descalços, e aí ia ela. A brutalidade do episódio ecoa na minha cabeça, até hoje.
Tempos soturnos, aqueles. Os parcos cuidados ao nascer prolongavam-se pela vida fora. Vidas quase exclusivamente de trabalho, o compasso dos anos a ditar, implacável, as duras marcações: crescer, trabalhar, trabalhar, casar, ter filhos, filhos, filhos, criá-los e pô-los a trabalhar e morrer. Vidas onde faltava tudo, afectos incluídos, em certos casos. Dizer que estamos em crise quando, não podendo comprar artigos de marca, passamos a comprar marcas brancas, é excessivo. E, na verdade, não é isto que nos preocupa. O que nos preocupa é não sabermos se isto vai ficar pior, se vamos ter que dispensar certos alimentos e hábitos que tínhamos por adquiridos. É que apesar da mudança ser aquilo que de mais certo temos na vida, ainda é uma palavra que nos causa muita impressão.

Sem comentários:

Enviar um comentário