quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Crónica número 1

Ia jurar que tinha sido mesmo ontem, mas dizem-me que não. Que já passou muito tempo, apesar de eu sentir e ter para mim que ainda foi ontem. Ainda foi ontem que saltei da cama e a minha roupa estava já preparada para eu vestir. Ali, direitinha, nas costas da cadeira. O penteado, o mesmo de sempre, duas longas tranças, uma de cada lado da cabeça. Com uma paciência infinita, os cabelos, sempre muitos, eram passados daqui para ali, por entre os dedos da minha mãe. Eram sempre tranças, que com aquele volume de cabeleira, que pareciam duas em vez de uma, não dava para arrumar de outro modo. Fui para a escola, a pé, por uma berma de estrada que era isso mesmo, uma berma de estrada, não era um passeio. Eu e os meus amigos, como sempre, estrada acima, os carros a deslizar nos paralelos. Chegámos e mal vimos a professora, começámos a dizer, como em tantas outras ocasiões, “olha a nossa senhora!”. A nossa senhora era a professora, não era a mãe de Jesus. Trocamos os sapatos pelos chinelos – assistimos às aulas de chinelos, para não sujar a alcatifa – e assim ficámos até ao intervalo. Foi ontem, sim, que sai para o intervalo de braço dado com a Jacinta e com a Sandra e andámos às voltinhas pelo recreio. Os intervalos, muitos deles, eram passados assim, às voltinhas pelo recreio, e ontem não foi excepção. Também brincámos ao “Papá Ferreira, dominó, a demissão, dominó, comprei um ferro, dominó, ferro de carvão, dominó, para passar, dominó, o meu roupão, se esta terra fosse minha, dominó, mandaria construir, dominó, um palácio de cristal, dominó, a demissão”. Não sabia bem o que estava a dizer mas sempre gostei do som da ladainha e do bater ritmado das palmas. Mais um tempo de aula e lá vim, eu e os outros, estrada abaixo, para casa. O almoço, o mesmo sacrifício de sempre, mas depois muita e muita brincadeira, com a Paula, a Márcia, a Sílvia e o Rui. As nossas risadas só foram interrompidas com a chamada para o lanche e, horas depois, para o jantar. Tudo prontinho, como sempre, foi só comer, tomar banho e vestir o pijama. Dizem-me que não foi ontem que isto se passou, que já foi há muito tempo, no tempo em que o tempo corre a nosso favor, é nosso amigo, é mais longo e mais brando. Mas eu não acredito. Tenho para mim que ainda foi ontem e não fosse a roupa não estar, direitinha, na cadeira, à minha espera para eu a vestir, diria que o ontem se ia repetir hoje e amanhã. Mas a roupa não está e vejo agora que o pequeno-almoço não está na mesa, que o meu cabelo encolheu e que já não dá para fazer as duas longas tranças, uma de cada lado. Os meus amigos não estão à minha espera, à porta, e não encontro a mochila para pôr às costas. Também não vejo a minha mãe, os meus irmãos, não está ninguém, só eu, num tempo que eu não conheço.

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